Um Coroinha Pequeno Demais
.........Os ANOS 60 foram parecidos. O Brasileiro entrou nos “ANOS DOURADOS” de mãos dadas com DEUS. No SARANDI, com menos de cinco mil almas, chegavam jovens vindos dos seminários e dos quartéis do EXÉRCITO. Contavam histórias incríveis. As vocações despertavam. Alguns moços iam estudar em outras cidades, estados, países... Um deles foi trabalhar em NOVA YORK. Há Sarandienses nos quatro cantos do mundo. É difícil, até, contar quantos doutores. A personalidade e a inteligência dos PAPAS (PIO 12 e JOÃO 23) davam à Igreja Católica protagonismo mundial.
.........Os jovens eram
puros, leais, fiéis... Ninguém lograva ninguém. A pureza da juventude aparecia
nas canções. Na música italiana: “ANDARE VIA LONTANO / CERCARE UN ALTRO MONDO
/ CIAO, AMORE, CIAO” (2º lugar no Festival da Canção da ITÁLIA ). Na
música brasileira: “JÁ QUE TERMINAMOS / SÓ RESTA, AGORA, O ADEUS FINAL / TE
AMAR DEMAIS / SER UM BOM RAPAZ / FOI O MEU MAL...”. A ITÁLIA e o BRASIL
viviam a Era do Pecado. Todos sentiam remorso. Todos tinham medo de DEUS. Aos
sábados à tarde, íamos nos confessar na Igreja Matriz. A Primeira Missa
acontecia no Cinema. E no mundo real: no SARANDI, na BOA VISTA, no MONTENEGRO,
no CARAZINHO, no PARECI... Hoje, fazemos de conta que não existe pecado. Mas
estamos fazendo pecados, às vezes, até bem mais graves... com outros nomes.
.........Os líderes
deram-nos corda. Os fatos deram-nos sonhos. Era moda ser Escoteiro ou Lobinho.
Sob o comando do idealista BENITO PAPINI. Quem não era Escoteiro era Coroinha.
Uma turma por ano era levada ao Seminário. Ao vencer a Copa do Mundo no CHILE,
com PELÉ e GARRINCHA, o Brasil foi se firmando como o “PAÍS DO FUTEBOL”. Os
principais times da região (HARMONIA, OURO VERDE, ITAPAGÉ, IPIRANGA, UNIÃO,
GLÓRIA, INDEPENDENTE, PALMEIRENSE, ATLÉTICO...) possuíam atletas em várias
categorias (Titular, Segundo, Juvenil e Infantil).
.........O meu irmão,
CLÓVIS (“LETO”), era Escoteiro e Coroinha. A foto dos Coroinhas de 60 plange!
Pequenos episódios mudam o itinerário das pessoas. Quando o Chefe dos
Escoteiros aumentou a mensalidade, o PAI (FRIDOLINO) retirou o meu irmão do
Escotismo. Para sempre! Eu nem cheguei a assumir como Lobinho. A época era de
inflação crescente. Os comerciantes não conseguiam repor os estoques. Na minha
família, a situação era a seguinte: o PAI queria que os dois guris fossem
Padres. O CLÓVIS foi para o Seminário de TAPERA. Eu me alistei como Coroinha,
na Paróquia Nossa Senhora de LOURDES. Naquele saudoso ano de “62”, o Vigário
era o Padre ERNESTO.
.........Eu gostava de
ajudar na Igreja. O ambiente era bom. Éramos bem tratados. Após às missas, os
Coroinhas ganhavam alguns Cruzeiros. O que faltava era um pequeno Curso para
preparar os guris para a função. Não havia Coroinha menina, devido à
cultura da época. Os cargos mais importantes eram reservados aos homens.
.........No meio da
semana, morreu um homem importante. Os Coroinhas foram chamados. Só apareceu
um, o mais pequeno. Formou-se uma multidão. Com o Padre ERNESTO na frente,
seguimos, no meio da tarde, em coluna dupla, pela Avenida EXPEDICIONÁRIO. Eu me
sentia orgulhoso. Havia largado o bodoque por algumas horas. Estava
participando da vida da Cidade. Com o traje de Coroinha, me sentia o máximo!
Na frente do BERTOCHI (“TITUM”), falaram comigo: “QUICO, quem
morreu?”. Pensei um pouco e respondi: “O TOAZZA!” (É que havia muitos moradores
com este sobrenome...).
.........Quando chegamos
no encontro das avenidas, o Padre me disse que havia esquecido do material.
Falou para eu ir correndo até a Casa Canônica e buscar o incenso... Saí
correndo no sentido contrário ao da procissão. Olhavam-me com surpresa. Eu até
imaginava o que aquelas pessoas, a maioria de origem italiana, comentava: “Por
que o filho do FRIDOLINO está correndo morro a cima, com a fatiota de
Sacristão, se a procissão caminha morro a baixo?”... “Será que ele piorou?”.
.........Ao chegar na
Casa Canônica, parei de correr, repentinamente. Cometi uma falha grave! Eu
deveria ter parado aos poucos. Senti falta de ar. Do pulmão para cima, tudo
ardia. A traquéia, faringe, laringe, esôfago... os “caninhos do pulmão”. Para
resumir: pensei que eu ia morrer. Apareceu uma senhora para me ajudar: “O que
que tu qué, piá?”. Com a garganta funcionando a 10%, respondi: “NÃO CONSIGO
SUSPIRAR!”. (nós falávamos errado; e escrevíamos como falávamos).
.........Após alguns
minutos, pedi o material (Um aparelho de fazer fumaça). Perguntei-lhe se, em
todos os enterros, o Coroinha tinha que vir buscar alguma coisa. Ela respondeu:
“Não. Esta foi a primeira vez que o Padre esqueceu.” Agradeci. Voltei correndo
atrás da procissão. Consegui entregar o incenso, ao Padre ERNESTO, antes da
entrada do Cemitério. Como dizem os soldados: “Missão cumprida!” A sepultura
ficava perto do Estádio PEDRO DEMARCO. Os discursos em homenagem ao falecido
coincidiram com o treino da equipe titular do HARMONIA. Houve momentos em que
as frases se intercalaram: - “Foi um bom homem!” – “SOLTA A BOLA, FOMINHA!” –
“Ajudou a construir o nosso SARANDI!” – “LEVA A BOLA PRA CASA!” – “Foi um chefe
de família exemplar!” – “CHUTA, ROGÉRIO!”... Parece engraçado. Mas, para mim,
foi uma tarde triste...
.........No domingo
seguinte, na minha segunda Missa, faltou o Sacristão da Sineta. Fui escalado.
Recebi algumas orientações, ”em cima da hora”. Os cientistas trabalham com
afinco, ainda hoje, para entender a memória do homem. Às vezes, ela funciona.
Às vezes, não funciona. Eu era perfeccionista. Não queria errar nada. Porém,
naquele dia, não toquei a sineta corretamente. Passei vergonha. Fiquei com o
orgulho ferido. Foi um trauma?
.........O senhor leitor
deve estar pensando: “Será que estas coisas pequenas são importantes?”. Na minha
opinião, são! Eu era pequeno e imaturo. Mas era sério. Foi por causa do incenso
e da sineta que abandonei, para sempre, a carreira religiosa. Mas devo
reconhecer que a chama da religiosidade... nunca se apagou no meu peito! No que
tange às vocações, assisti ao trabalho de um Padre Italiano. Algo havia que lhe
dava mau humor. Deu um tapa no rosto de um guri que não parava quieto. Do
púlpito, condenou a imoralidade. Nem sempre foi compreendido. Recebeu
fotografia de mulher sedutora. O que ele mais queria era formar uma família. Um
dia, para fugir do cerco da tristeza, deixou um bilhete, no idioma italiano, e
foi embora para sempre. Em elegante caligrafia, proclamou: “SCAPPO DA UNA VITA CHE NON HO MAI VOLUTO ABBRACCIARE!.” (Em Português: “FUJO DE UMA VIDA QUE NUNCA QUIS
ABRAÇAR!”). Em defesa daquele ex-sacerdote: que jogue a primeira pedra quem
jamais caiu numa armadilha das vocações!
.........Escritores de
todo o mundo já registraram a semelhança entre o rio e o homem. As águas
não param. Desviam as pedras do caminho. E voltam para o mar... E o homem? O
homem desvia de um incenso. Foge de uma sineta. Tropeça numa fotografia... mas
sempre volta para DEUS.
.........“Por vezes, quando reflito sobre as tremendas consequências, que resultam das pequenas coisas... Fico tentado a pensar... que não há pequenas coisas.” (BRUCE
BARTON).
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