...........Ao iniciar estas linhas, afirmo que este trabalho foi um dos mais difíceis para mim, sob a ótica emocional. E a seguir, antecipo duas respostas, a perguntas inevitáveis. Por que não escrevi antes sobre este assunto? Porque não tive condições de abordá-lo com profundidade. Tenho o direito de escrever sobre este episódio? Sim. Tenho. O evento histórico que ocorreu não me pertence. É do Povo Sarandiense. Iniciarei o resgate dele. E, após, entregá-lo-ei de presente, para ser preservado às gerações futuras. Não tenho arquivos, nem fotografias. Não é um trabalho de historiador. Tendo o cuidado de não magoar, evitarei declinar nomes. Mesmo porque alguns personagens daquela efeméride já não “cavalgam” mais por estes rincões...
Num domingo ensolarado dos “Anos Dourados”,
eu e alguns torcedores e atletas juvenis do HARMONIA, por algum motivo forte,
decidimos não assistir ao filme da “matinê” do Cine Guarany, do “seu
DÂNDALO”... Antes das 15h, já estávamos no Estádio da Baixada. Era dia de
clássico municipal. Nos posicionamos, calmamente, nos degraus do lado direito
do pavilhão da arquibancada. Éramos um grupo homogêneo. Havia guris com cabeça
de homem. Homens com cabeça de guri. E guris com cabeça de guri. Uma geração de
corações sem maldade... “OH! Que saudade matadeira!”.
Um amigo leal, que estava sentado à minha
direita, chamou-me a atenção para uma presença especial na torcida. Estava no
centro do pavilhão, um pouco abaixo e à esquerda de nós... a 7 metros de
distância... Eu tive dois problemas naquela velha tarde de domingo. Naquele
momento, estava começando o primeiro: a moça! Ficamos perturbados com a
presença da menina-moça... Pertencia à elite social do Pequeno SARANDI. Fiquei
pensativo... Não tinha como não pensar... Alguma coisa não fechava. Faltava uma
peça para montar o quebra-cabeça. Tinha ouvido falar dela. Agora estava ali,
perto de mim, ao vivo e a cores. Que mistério! Nossos caminhos nunca haviam se
cruzado. Por que?
As equipes já estavam no gramado. Feito o
sorteio. O Juiz apontou para o lado do CARAZINHO. A sorte estava lançada.
Naquela trave ficaria o goleiro alviazul. O HARMONIA chutaria para o lado da
Cidade... ou da PALMEIRA. Até aí tudo bem. O jogo valia pelo campeonato. O
momento era de tensão. Eu era “doente” do HARMONIA. Treinava contra os
titulares. Sonhava ser titular, quando ficasse mais forte. Até sabia como o
time jogava... Mas e o destino? Como joga? Qual será o próximo drible? Quem
sabe?
Mesmo sendo discreta, atraía olhares... e
alguns elogios. Simples e elegante. Alegre e descontraída. Muito bem
relacionada. Não tirava os olhos do gramado. Seu namorado era um dos jogadores
do Tricolor. Sentada, com as pernas unidas, segurava no colo um menino de um
ano e meio de idade. Apertava-o com carinho. Não vou negar que me comovi... que
por pouco não chorei... Eu não vou negar... que pensei em fazer amizade... em
breve. Ninguém de nós foi falar com a “musa”. Melhor assim. Éramos meio
ingênuos. Não sabíamos que o relacionamento era tão importante... e que
esquecer alguém era difícil, muito difícil...
O jogo começou. O HARMONIA não conseguia
passar do meio de campo. E lá vinha o IPIRANGA... Era um ataque atrás do outro.
Como se fossem ondas. O Tricolor era superior. Dominava o jogo. Mas a bola não
balançava as redes. O goleiro pegava, ía para fora... ou batia na trave.
Parecia haver alguém “endiabrado” no setor esquerdo do ataque. Foi aí que
aconteceu uma das jogadas mais interessantes que vi na vida. Que pena que não
havia televisão para gravá-la! O IPIRANGA aumentou a pressão. Fez um verdadeiro
“bombardeio”. Chutou três bolas na trave, em curto espaço de tempo, em
sequência. Foi algo cinematográfico! Uma delas foi inesquecível: a bola fez um
trajeto em diagonal e chocou-se, caprichosamente, com o encontro do travessão
com a trave vertical, que ficava para o lado da Cooperativa do IVO FABRIS. Os
torcedores colocaram as mãos na cabeça. Parecia que haviam se combinado. Após o
chute, o atleta, com um sorriso no rosto, caminhou, com orgulho indisfarçável,
de lá para cá... Consegui captar o pensamento dele: “Viram o que eu fiz? Não
mexam comigo!” Falei, então, ao pessoal: “ Não mexam com ele!” A torcida entrou
em delírio. Era uma partida proibida para doentes... do coração. Eu estava “meio”
apavorado. Não era o HARMONIA que eu conhecia. No meio daquele “sufoco”, o Juiz
apitou. Graças a DEUS! Zero a zero era um bom negócio. Não tinha visto a meia
cancha correr tanto. Jogaram, heroicamente, contra o IPIRANGA... e o destino.
Talvez tivesse sido melhor ver o filme do “VALDISNEI”...
Descemos do pavilhão para beber alguma
coisa. No pátio do bar, havia um burburinho enorme. Os torcedores do HARMONIA
estavam assustados. Aquele monte de bolas na trave não era um bom sinal. Eu não
conseguia chegar no balcão. Os Ipiranguistas estavam orgulhosos, agitados,
surpresos, eufóricos... Pedi uma Grapete. A piazada tinha tomado tudo. Eu me
sentia no meio de dois bandos de lavadeira. Eram umas 300 pessoas falando
simultaneamente. Pisaram no meu pé. Foi um gordo. Eu não gostava de gordo. A
Irmã havia proibido palavrão. Tudo bem. Os Ipiranguistas queriam uma
explicação. Cada um dava a sua versão. Então pedi uma Pepsi-cola. Podia
encontrar, sob a rolha, um prêmio. Tinha acabado. Entrei no clima da confusão:
“Afinal, o que tem nesta bodega?” Tinha a gasosa do MACCARI... Pedi logo duas!
Um torcedor, sob efeito da “marvada”, deu a culpa ao Juiz. Pobre árbitro! Mesmo
quando acerta, a genitora é lembrada... Faz parte do pacote. O ingresso dava
direito a ver heroísmo, golaço, a bicicleta do HILDO DE JESUS, pastel de origem
duvidosa, baixaria...
As pessoas ficaram com medo, quando um
líder político da UDN, que trabalhava no Congresso Nacional de SARANDI, culpou,
categoricamente, as “forças ocultas”. Ouviu-se um silêncio geral. Quem seria?
Fazia sentido. O “Tio” não estava de todo errado. Encontrava respaldo na
História. Alguns anos antes, o próprio Presidente da República, Dr JÂNIO
QUADROS, havia pedido demissão... por causa delas. As “forças ocultas” poderiam
ter vindo de BRASÍLIA direto para SARANDI, a “Passarela da Produção”. Por que
não?
Um torcedor, com rosto vermelho e barriga
“importante”, ameaçou entrar com recurso. O HARMONIA havia jogado com dois
goleiros. A “cultura” era forte. Já no primeiro tempo, ele viu dois goleiros,
duas bolas, duas traves... Pagou os pecados. A grande área do ALVI-AZUL era,
para os sóbrios, uma grande confusão. Que dirá para os “pinguços”. Vamos em
frente, gente! Isto aqui não é EUROPA!
Mas o que, realmente, acalmou a torcida foi
a explicação, de cunho científico, emanada por um profissional da área de
tecnologia: “tinha um sapo enterrado na goleira!” Gastei o primeiro palavrão da
cota diária. Vou pedir desculpas para a Irmã ANITA. Ali começava o meu segundo
problema do dia: o sapo! O BRASIL era o País do Futebol. Este precisa ser
sério! Muitos concordaram com o “cientista”. Naquela época, a gente lia pouco,
alguns muito pouco... outros, nada! O que os grandes diziam chegava aos ouvidos
dos piás como “verdades verdadeiras”. Ninguém questionava. As escolas, salvo
melhor juízo, desenvolviam espírito crítico reduzido. Nas campanhas eleitorais,
circulava um outro tipo de verdade. Termos incorretos ou mal empregados
provocavam falhas de comunicação, mal-entendido, desgosto... Uns diziam que era
macumba. Outros, saravá. Alguns, despacho. Decidi “tirar a limpo” a denúncia.
Estava determinado a encontrar o sapo. Alguns guris não conseguiram conter a
curiosidade. Foram lá armados até os dentes: bodoques, facas e pedras!
Um entusiasmado torcedor do HARMONIA, com
forte sotaque VÊNETO (ITÁLIA), com o braço direito erguido, bradou: “A GENTE
TEMOS GOLERO!” E possuía. Precisamos ser justos. SARANDI e RONDINHA produziam
grandes goleiros.
Um Aluno esperto do GINÁSIO SARANDI, o IVO
do Café Central, arrancou gargalhadas do Povo. Relatou o que havia vivenciado.
Assistira o primeiro tempo perto de um torcedor do IPIRANGA, de origem
italiana. Tudo bem! “Bona gente!” Cada vez que a bola era chutada e não
balançava as redes, ele blasfemava... várias vezes. Como houve várias bolas na
trave, deve ter blasfemado durante todo o primeiro tempo... Dizia: “porco
isso”, “porco aquilo”,...
O guarda apitou. Pronto! Estou preso!
Desacato à autoridade etc... Enganei-me: quem apitou foi o Juiz da partida.
Todos saíram correndo. Ninguém queria perder o segundo tempo. O último a sair
foi o Bodegueiro. Colocou uma garrafa de “FAZENDAS” de baixo do braço esquerdo.
Chamou-me de magricela. Correu para trás da goleira do HARMONIA. Agradeci:
“Obrigado, Tio!” Afinal, a minha base educacional era consistente, adquirida na
Linha PERAU. Não me senti ofendido. Como ele pesava 110 quilos, iria encontrar
outros magricelas pelo caminho...
Encontrei um Professor. Tinha perdido os
óculos na confusão do Bar. Perguntou onde estava. Respondi: “no Estádio.” Não
gostou. Disse que eu estava na idade da bobeira. Ótimo! Ajudou-me em muito. Ali
começou a minha carreira. Eu já sabia que era bobo. Meio caminho andado. Só
faltava saber por que...
Tratei de subir logo a velha escada de
madeira. Estralou, rangeu e balançou. Não caiu com a italianada “forte”. Não
seria justo ela cair com um magricela... tipo bobo.
A expedição para procurar o sapo foi
adiada. Combinamos voltar num outro dia, com mais calma.
Ao percorrer as arquibancadas, senti na
pele a guerra... de nervos. O CAMPANA estava calmo. Uma freira foi falar com
ele. O BACHI, alegre. Vendeu um relógio no intervalo. Ou dois. O HELTON KLEIN
estava confiante no Tricolor. O BAUDIN, valente, pressionava o Juiz. Queria
vencer no braço... ou no grito. O “JOVANINI” estava com cara de boi... indo
para o matadouro. O PERUZZO, pálido, tomava água. O CHIOSSI estava pior: tinha
consumido um pastel estragado. Ou dois! O ADEMAR, filho de um Soldado da
Brigada, não parava de comer as unhas. O “Gauchinho” disse que eu estava
branco. Tudo bem! Magro, bobo e branco... Mas na luta! Disposto a cair de pé,
se necessário!
Voltamos a olhar para a jovem simpática e
misteriosa. Fiquei impressionado com a responsabilidade dela. Cuidava do
irmãozinho como se fosse uma relíquia. E era! Era o filho caçula de um dos
casais mais queridos do Município. De pé, o “pequeno príncipe” tinha meio metro
de altura. Alegre e pacato. Não fugia. Não tentava fugir. Diferente de mim que,
às vezes, fugia... deixando aflita a Dona JOVILDE. Eram apegados um ao outro.
Protagonizavam uma comovente história de amor. Era uma coisa normal querer ser
amigo deles. Cresciam em prestígio e
prosperidade. Escutavam a todos com educação.
Minha Mãe sentia orgulho de ser amiga da
Mãe dela. Meu Pai foi Presidente do IPIRANGA, em 1954. O Pai dela foi depois
(em 1962). Carentes, esperávamos um olhar da guria. Não olhou. Fez bem! Não
tínhamos o Fusca 1300, nem a bicicleta Caloy. Se tivesse olhado, o “estrago”
poderia ter sido maior! Nunca falei com ela. Nunca falou comigo. Numa Cidade
pequena, de vidas entrelaçadas... Por que? Tímido e meio selvagem, eu vivia em
movimento. Esse era o problema? Pode ser. Não tenho certeza, mas parece que, no
jogo da vida, o destino armou uma barreira, na grande área, separando nossos
caminhos...
“Lá vai o HARMONIA!”, alguém gritou. O
nosso centroavante entrou como uma flecha, na grande área do sapo, digo: do
IPIRANGA. A jogada foi emocionante. Até ele cair. Ou melhor: desabar! Parecia
um castigo. Torceu um “monte de coisa”: tornozelo, joelho, coluna... Por pouco
não quebrou a espinha! Mesmo sem terem sido chamados, os “enfermeiros” correram
para lá. O atleta foi colocado na maca e, após, num Cinca Chambord e levado, às
pressas, ao HOSPITAL SANTO ANTÔNIO, do saudoso e competente Dr MÁRIO AZAMBUJA,
o “TIO BUJA”. Na correria, um dos maqueiros, o prestativo “TABORDINHA”, perdeu
o boné... São os “cavacos” do ofício... Foi ali que decidi mudar a linha da
investigação: não seria, apenas, um sapo enterrado. E, sim, uma alcatéia de
sapos! Não sei bem se esta é a palavra certa. Na aula dos coletivos, eu não queria
aprender. O Professor ROSIN não queria ensinar. Deu no que deu: “show” de
gafes!
Mas favoritismo não ganha jogo. No futebol,
há time que se faz de manso, para “almoçar” o domador... O Tricolor, chutando
para o lado da PALMEIRA, deslanchou. De 10 em 10 minutos, fazia um gol. Quase
meio século depois, a memória não resgata aquelas jogadas. É uma pena! Foram
normais. Tristes para nós. A memória apagou-as para se defender da tristeza.
Esquecer um gol é fácil. O difícil é esquecer um sorriso! O amor marca como uma
brasa... Suas marcas são profundas!
O homem de preto apitou. “O jogo já
acabou!” O placar marcava: quatro a zero para os donos da casa. Não é possível!
O HARMONIA jogou contra o IPIRANGA, o vento... e o sapo!
SARANDI sentia os reflexos do que acontecia
do lado de fora dos seus muros. Estudantes espalhavam-se pelo Mundo. Buscavam
oportunidades melhores. Alguns desapareciam para sempre. Fruto de empréstimos
vultuosos do Governo Americano, rodovias modernas eram implantadas pelo BRASIL.
Uma delas “acertou em cheio” o Estádio da Baixada... e o sapo!
No Campo do IPIRANGA, o clássico municipal
foi emocionante, inacreditável e histórico.
Mas o que posso dizer sobre o “campo das
paixões”?
Entrou no segundo tempo, com chuteiras
novas, um jogador invisível: um anjo, o destino... ou o Anjo do Destino...
Nunca mais vi a menina-moça... nem o
Estádio do IPIRANGA, palco de grandes emoções e saudosas lembranças...
“Eu
pensei que fosse fácil esquecer!”.
POST-SCRIPTUM - Numa sexta-feira, quando
voltei de IJUÍ, fui ao BAR DO DALBOSCO comprar bananas. O Negro “TIÃO”
(SEBASTIÃO DA SILVA), enquanto ouvia a gaita do GAMBETTA, emocionado me contou:
“O
‘distino’ se apaixonou por ela...”.
The End
C F VOGT
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