quinta-feira, 10 de maio de 2018


O Mundo de Minha Mãe


.........Ao aproximar-se mais um Dia das Mães, o meu pensamento foge. Como um cavalo tordilho xucro, dispara pelos potreiros do passado. É inútil ordenar as lembranças. Elas têm os próprios caminhos. Voltam quando querem.


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........No inverno de 1958, quando a Seleção Canarinho chegou, desacreditada, na Suécia, eu desci a escada grande da casa nova, com as minhas pernas pequenas. Encontrei a Mãe, com as mãos frias, trabalhando no jardim. “Está zero grau negativo! Tu estás com pouca roupa!”
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.........Com 3 anos, na casa velha, eu havia fugido de casa, para ver as andorinhas pousadas no fio da luz. Com 4 anos, na casa nova, pensava saber o que estava acontecendo. Estive presente num dos dias mais tristes que a Cidade viveu. Havia mais de 10 pessoas em volta do Rádio do Vizinho. No primeiro jogo da Copa, o Brasil não conseguiu fazer nenhum gol na Tchecoeslováquia: 0 a 0! Que sofrimento! O Garrincha não parava de pé! Descobri que a minha Terra era verde e amarela!

.........Por aqueles dias, fiz, sem licitação, uma cerca de ripas, para que as cobras não viessem pelo chão. Não deu certo: elas caiam da bergamoteira! Salve-se quem puder! Os gaudérios não salvavam nem a cuia de erva mansa!



.........A Mãe era um diamante bruto! Estudou, apenas, um ano e meio na colônia. Quando errava a Taboada, tinha que se ajoelhar sobre grãos de milho. Algumas letras que ensinava eram diferentes das que a Professora ensinava.



.........De coração italiano, ficava mais de uma hora ajoelhada aos pés da Capelinha de Nossa Senhora. Era prática, de veloz raciocínio. Sabia fazer de tudo um pouco. As comidas eram saborosas. Trabalhava de manhã, de tarde e de noite! Mesmo com dor nas pernas, dava leite ao cão e aos gatos, quando eu "me esquecia de me lembrar".
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.........Quando os ladrões vieram roubar nossos móveis, empurrou-os porta afora! Quando pediram resgate, respondeu: “Vocês estão com o diabinho! Têm que rezar! É difícil sequestrar o Quico!”
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.........De todos os moradores do meu pequeno Sarandi, eu era quem mais ficava perto da Mãe. Às vezes, atrapalhava, mas ela nunca deixou de me dedicar o mais profundo amor! Suas frases curtas me educaram para toda a vida. “Olha o que que tu fez!” Nos anos 50, o chinelo cantava mais do que o galo! “Não estrafuca o bolo!” Não adiantava ir ao Procon reclamar. Na Cidade, havia apenas um Brigadiano!
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.........A Plantadora de flores e árvores me ensinou, aos poucos, os nomes dos personagens da vida. Fiquei mais de um ano chamando o amarelo de cor de ovo! Na primavera, descobri que nem todas as flores eram margaridas. Descobri, também, que as meninas que passavam na Avenida não eram iguais.
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.............A árvore preferida era o jasmim, que não foi plantado pela Mãe. Dava flores brancas e perfumadas, no centro do pátio, que era uma pedreira. Com as árvores e flores, vieram os pássaros, as borboletas, as abelhas... A Jovilde guardava um segredo: qual era a fonte de tanta alegria de viver? A lealdade ao meu Pai trouxe os fregueses da Loja. O Fridolino teve formação germânica, esculpida pelos Irmãos Maristas.


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.........O mundo girava em torno de mim! Lá vai o Rei do Pátio: levando no pescoço uma funda, com a calça brim coringa suja no joelho e na bunda... “Onde tu botou o martelo?” Sempre no meio dos pés, pisoteando por tudo, roubando a enxada, de olho na "marmelada de pera", comendo o merengue antes da hora, saboreando bolacha maisena com chocolate... fui começando a entender a alma humana. Descobri que 90% eram pecadores! Sabe como? Os guris contavam as penitências das confissões: 80 Pai Nosso, 60 Ave Maria! 70 Santo Anjo! Eu me perdia na conta. Tinha que começar tudo de novo!
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.........Os Padres, as Freiras e a minha Mãe falaram-me mais de “mil vezes” sobre o poderoso Anjo da Guarda... Quando eu precisava, Ele aparecia. A Mãe afixou, na parede da sala, um quadro colorido do Anjo da Guarda.



.........A vizinha do terreno de cima, a Dona Angelina, me adorava: “Olha o piccinin! Varde-lo!” Não tirava os olhos de mim. Ela já conhecia o Cliente! No dia em que caí do galinheiro, veio correndo me salvar. Escorreguei e fui parar numa cerca. Fiquei preso às ferragens da cerca de arame farpado... É uma emoção incrível! Dos ferimentos vertia sangue com açúcar. “O que um guri, que ainda não sabe a taboada, vai fazer em cima do galinheiro, num dia de chuva?” A Mãe minimizou a tragédia: “Os tombos pequenos previnem os grandes!” Foram muitos tombos: o Ítio caiu do trapézio. Não conseguia “suspirar”. A minha irmã caiu da escada externa e ficou inconsciente. A Mãe caiu da escada interna. Foi só um susto.
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.........A Cidade possuía quatro mil sobreviventes! Mas era Brasil, conforme os jogos da Seleção Canarinho confirmavam! Fui descobrindo que, além de ver, era preciso sentir... Eu e o Jânio Quadros já sabíamos que as forças ocultas também jogam!  É um erro dizer que o Anjo da Guarda não existe. É um instrumento de Deus, que não abandona o justo!
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......... A Mãe se preocupava comigo o tempo todo. Eu integrava uma categoria de RH importante: “burro com iniciativa!” Gostava de trabalhar sem supervisor. Então, decidi, por conta própria, derrubar a pedradas os ninhos dos marimbondos... Não deu certo! Os fregueses pararam de entrar na Loja. As abelhas chegaram à conclusão de que o culpado era o vizinho. Atacaram o Vitório Piccini. Ficou todo inchado. Fiquei com pena dele! Coitado! Veio, furioso, dialogar comigo. Perdi uma boa oportunidade de ir para o Céu. Aos poucos, foi amadurecendo a idéia de que Eu deveria ir para o Quartel.
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.........O vínculo entre a Mãe e eu era muito forte, fortíssimo! Estivemos juntos em momentos dramáticos e felizes. Hoje, senti vontade de olhar as imagens daqueles dias maravilhosos, que parecia não terem fim. Mostrar as fotos ao senhor, Amigo Leitor. Elas falam! As mais emocionantes estão  longe.

........Não compete aos números delinear os contornos de um coração de Mãe. A Jovilde, inculta e cansada, viajou 3.000 Km para ver o filho amado receber a “espada” de Caxias!



. .........No livro da Alice, chega um momento em que a escrivaninha do Escritor se transforma num urubu e começa voar. As lembranças valem ouro. Uma puxa a outra. E, quando elas se unem, a caneta começa fotografar:
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O cavalo branco do Nono Gava
A caminhoneta azul da Linha Perau
Casa pronta, carro novo
Filhos sadios, camisas listradas
Bola de couro debaixo do pé
Capelinha na sala
Crucifixo de madeira na porta
Deus dentro de casa
O espetáculo dos vagalumes na noite escura
Gatos lagarteando ao sol da manhã
Rita Pavone na Rádio Sarandi
Armindo Antônio Ranzolin na Farroupilha
Goleadas da Seleção
Os jundiás do Rio Bonito
"Passarinhada de peixe" na cozinha
Merengues grandes na bandeja
Os craques do Harmonia arrastando a multidão
O meu primeiro gol no Estádio Pedro Demarco
As noites de Circo com o Pai
Prestígio na Cidade e Região
A música do Joãosito incendiando corações
Balconistas apaixonadas
A Miss Sarandi abanando para a Juventude
Festa de Santo Antônio
O encantamento da Missa do Galo
Caminhões descarregando
Romaria de fregueses na Loja
O carinho das Professoras
A Missa das Nove com o Pai
Os presentes da Madrinha
Marcelino Pão e Vinho no Cinema
O primeiro livro como prêmio
A primeira poesia que escrevi
Margaridas balançando ao vento
O “cardume” de beija-flores parados no ar
Canções italianas na eletrola e no Cine Guarany
Vidas honestas no auge
As hortências azuis
As borboletas cor de ovo
Pinhão na chapa do fogão à lenha
O Repórter Esso ecoando pela cozinha
O tempo que não sabia parar
A infância passageira
A primeira Menina que gostou de mim
A saudade matadeira
As viagens à Capital do Norte.
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.........A mentalidade do Cidadão nem sempre perdoa o doente. Mas ninguém pede para adoecer. Quem conhece a doença hereditária? Num dia triste, em que a ambulância demorou muito para chegar, a Mãe foi levada ao Hospital de Passo Fundo. Enquanto aguardava na fila da UTI, os Anjos decidiram que a grande Jovilde deveria empreender a última viagem. Levaram, então, a alma do jardim, o pilar da Família, a amiga mais leal.
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.........Ao volver os olhos marejados para aqueles dias felizes, percebo que a Mãe, sem maldade no coração, me preparou para um mundo que nunca existiu. Para quem ficou, deixou uma grande lição: a Felicidade é possivel!
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.........Um ex-companheiro de Futebol do  Harmonia, querendo me consolar, exclamou: “Tua Mãe fez um jardim!” Eu respondi: “A Mãe fez um mundo... o meu mundo!”




“ N o   C é u ,   n o   C é u ,   c o m   m i n h a   M ã e ,   e s t a r e i . . . ”

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