.........Nas décadas de 40 e 50, os médicos formados na Capital davam provas de coragem ao decidirem trabalhar no interior. Com poucos colegas, tinham que enfrentar doenças ligadas à ignorância do Povo... Quando um epiléptico desmaiava na calçada, curiosos se juntavam. Todos emitiam um laudo... Dali a pouco, o infeliz levantava... para espanto geral. Cães doentes, inclusive com Raiva, circulavam pelo Município. O consumo de alimentos salgados provocava derrames...
.........Em 1954, o Dr MILTON foi pioneiro ao empregar um novo e revolucionário anestésico local, recebido naquela semana. Era uma espécie de lança-perfume que, acionado, criava um jato gelado, anestesiando o local, em menos de um minuto... O paciente (cobaia) foi um jovem de 14 anos, dois metros de “altitude”, residente na minha Rua (Tiradentes). Estava sofrendo fortes dores com um furúnculo na coxa direita. O Dr Milton, então, com habilidade e um bisturi limpou e fez o curativo... Os métodos caseiros nem sempre davam resultado. No final, os médicos eram os salvadores...
.........Durante a infância, num Sarandi que já não existe mais, a Religião era valorizada. As famílias compareciam completas aos eventos: Missa do Galo, Festa de Santo Antônio, Coroação de Nossa Senhora, Crisma... Algumas palavras entraram em nossas peles: Fraternidade, Óstia, Jesus, Padre, Seminário, Papa...
.........O ano de 1960 trouxe a Inauguração da nova Capital do Brasil. E a minha Crisma! A Irmã Verônica disse que cada criança deveria ter um Padrinho. Mas eu era um piá sem Padrinho. Fui falar com o Pai (Fridolino): tirou o lápis da orelha, pensou... ainda dava tempo de escolher alguém de valor. A Missa Festiva seria no próximo domingo...
.........Decidi escolher o Médico mais popular: o Dr Milton. Mas havia um problema: tinha que combinar com os russos. Quem disse que o Dr iria aceitar? Uma guria invejosa, tipo tagarela, exclamou, na Loja: “Ele tem mania de grandeza!” É! Pode ser! Mas a minha geração travou uma batalha imensa contra o complexo de inferioridade...
.........A Mãe (Jovilde) me incentivou: “Bote a calça brim coringa, o congo e a camisa nova, listrada... Não tenha medo! Não deixe a Crisma para o ano que vem!” Com seis anos de idade, sem saber direito o que dizer, lá fui eu... O consultório ficava, em duas salas, na parte frontal do Cinema (Cine Guarany), ainda sem as pastilhas coloridas na parede. Havia poucos doentes para atender. Uma senhora pobre, com “pontada”, saiu... Fui entrando... Pedi se podia entrar... O Médico largou a caneta, levantou a cabeça e me olhou. Nada falou, inicialmente. Mas eu consegui captar o pensamento dele: “Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece!” Perguntou: “Você está doente? O que está sentindo?” Respondi: “Eu sou filho do Fridolino. Escolhi o senhor para ser o meu Padrinho de Crisma. O senhor aceita?” O Dr Milton me surpreendeu. A decisão dele foi imediata: “Sim! Eu aceito!”
.........Na Missa da Crisma, a Igreja Matriz N S de Lourdes estava lotada. O meu Padrinho compareceu. Deu-me de presente uma caneta Parker 21, verde escura. Era superada, apenas, pela caneta tinteiro Parker 51. Guardo de lembrança, até hoje, as partes dela. O Pai, religioso desde pequeno, levou a Família toda ao fotógrafo para registrar o fato. É a única fotografia em que a Família VOGT de Sarandi aparece reunida. Dentre milhares de imagens, talvez seja a de maior valor histórico...
.........O Dr Milton fazia palestras, educava as pessoas, curava os jovens, tratava os pobres, que nem sempre possuíam dinheiro na algibeira... Numa noite fria, quando estava hospedado no andar de cima do Hospital Santo Antônio, atendeu uma menina que sentia dores no abdômem. Disse à Mãe da guria: “Ela deve ter comido fruta verde!”
.........O Povo Sarandiense costumava organizar rifas. Coube-me a tarefa de vender um número ao Sr Candidato a Vice-Prefeito. Compareci ao consultório e disse, com a educação que me era peculiar: “O senhor pode me comprar um número da rifa? O senhor é rico!” Ele respondeu: “Quem foi que te disse que eu sou rico? Tu já vistes o meu imposto de renda?” Fiquei com cara de guaipeca que fez coisa errada na Igreja... Mas, apesar do susto, o Dr Milton adquiriu uma cartela... O Sarandiense precisava ter dois empregos: um era só para pagar as rifas!
.........O meu Padrinho gostava de Política. Ajudava os cidadãos no dia-a-dia. Desfrutava de grande prestígio. Não podia concorrer ao cargo de Prefeito: a sua vida era centrada na Medicina... Com a Família radicada na Capital, sofria a dor da saudade e da solidão. Viagens cansativas e perigosas levaram o seu sorriso...
.........No relacionamento interpessoal, o Dr Milton era convicto, franco, objetivo, sabia o que queria... Em dezembro de 1971, após passar um ano na Escola Preparatória de Cadetes, nos reunimos. Ele contou que, na Família dele, havia um militar insatisfeito com o soldo baixo. Ele me alertou que outras profissões poderiam me dar uma renda maior... e que, mais tarde, o soldo poderia ser insuficiente. O Padrinho estava preocupado com o futuro. Foi sincero. A minha resposta demorou cinco segundos: “Eu sou feliz no Exército!”
.........Os quatro médicos daquela época e seus familiares eram muito queridos pelo Povo. Todos são merecedores de homenagens. Mesmo aqueles que apresentaram algumas limitações fizeram o que foi possível...
.........O Dr Milton Alves
de Souza deixou saudade. Salvou vidas! Para que tão bondoso coração seja
lembrado, o Sarandiense batizou, com o seu honrado nome, um Templo do Saber...
Talvez não seja o maior. Nem o mais bonito... O importante é que ele paga...
uma dívida de amor e gratidão...
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