sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Lições do Passado - Dr Milton Alves de Souza

.........Nas décadas de 40 e 50, os médicos formados na Capital davam provas de coragem ao decidirem trabalhar no interior. Com poucos colegas, tinham que enfrentar doenças ligadas à ignorância do Povo... Quando um epiléptico desmaiava na calçada, curiosos se juntavam.  Todos emitiam um laudo... Dali a pouco, o infeliz levantava... para espanto geral. Cães doentes, inclusive com Raiva, circulavam pelo Município. O consumo de alimentos salgados provocava derrames...

.........Em 1954, o Dr MILTON foi pioneiro ao empregar um novo e revolucionário anestésico local, recebido naquela semana. Era uma espécie de lança-perfume que, acionado, criava um jato gelado, anestesiando o local, em menos de um minuto... O paciente (cobaia) foi um jovem de 14 anos, dois metros de “altitude”, residente na minha Rua (Tiradentes). Estava sofrendo fortes dores com um furúnculo na coxa direita. O Dr Milton, então, com habilidade e um bisturi limpou e fez o curativo... Os métodos caseiros nem sempre davam resultado. No final, os médicos eram os salvadores...

.........Durante a infância, num Sarandi que já não existe mais, a Religião era valorizada. As famílias compareciam completas aos eventos: Missa do Galo, Festa de Santo Antônio, Coroação de Nossa Senhora, Crisma... Algumas palavras entraram em nossas peles: Fraternidade, Óstia, Jesus, Padre, Seminário, Papa...

.........O ano de 1960 trouxe a Inauguração da nova Capital do Brasil. E a minha Crisma! A Irmã Verônica disse que cada criança deveria ter um Padrinho. Mas eu era um piá sem Padrinho. Fui falar com o Pai (Fridolino): tirou o lápis da orelha, pensou... ainda dava tempo de escolher alguém de valor. A Missa Festiva seria no próximo domingo...

.........Decidi escolher o Médico mais popular: o Dr Milton. Mas havia um problema: tinha que combinar com os russos. Quem disse que o Dr iria aceitar? Uma guria invejosa, tipo tagarela, exclamou, na Loja: “Ele tem mania de grandeza!” É! Pode ser! Mas a minha geração travou uma batalha imensa contra o complexo de inferioridade...

.........A Mãe (Jovilde) me incentivou: “Bote a calça brim coringa, o congo e a camisa nova, listrada... Não tenha medo! Não deixe a Crisma para o ano que vem!” Com seis anos de idade, sem saber direito o que dizer, lá fui eu... O consultório ficava, em duas salas, na parte frontal do Cinema (Cine Guarany), ainda sem as pastilhas coloridas na parede.  Havia poucos doentes para atender. Uma senhora pobre, com “pontada”, saiu... Fui entrando... Pedi se podia entrar... O Médico largou a caneta, levantou a cabeça e me olhou.  Nada falou, inicialmente. Mas eu consegui captar o pensamento dele: “Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece!” Perguntou: “Você está doente? O que está sentindo?” Respondi: “Eu sou filho do Fridolino. Escolhi o senhor para ser o meu Padrinho de Crisma. O senhor aceita?” O Dr Milton me surpreendeu. A decisão dele foi imediata: “Sim! Eu aceito!”

.........Na Missa da Crisma, a Igreja Matriz N S de Lourdes estava lotada. O meu Padrinho compareceu. Deu-me de presente uma caneta Parker 21, verde escura. Era superada, apenas, pela caneta tinteiro Parker 51. Guardo de lembrança, até hoje, as partes dela. O Pai, religioso desde pequeno, levou a Família toda ao fotógrafo para registrar o fato. É a única fotografia em que a Família VOGT de Sarandi aparece reunida. Dentre milhares de imagens, talvez seja a de maior valor histórico...

.........O Dr Milton fazia palestras, educava as pessoas, curava os jovens, tratava os pobres, que nem sempre possuíam dinheiro na algibeira... Numa noite fria, quando estava hospedado no andar de cima do Hospital Santo Antônio, atendeu uma menina que sentia dores no abdômem. Disse à Mãe da guria: “Ela deve ter comido fruta verde!”

.........O Povo Sarandiense costumava organizar rifas. Coube-me a tarefa de vender um número ao Sr Candidato a Vice-Prefeito. Compareci ao consultório e disse, com a educação que me era peculiar: “O senhor pode me comprar um número da rifa? O senhor é rico!” Ele respondeu: “Quem foi que te disse que eu sou rico? Tu já vistes o meu imposto de renda?” Fiquei com cara de guaipeca que fez coisa errada na Igreja... Mas, apesar do susto, o Dr Milton adquiriu uma cartela... O Sarandiense precisava ter dois empregos: um era só para pagar as rifas!

.........O meu Padrinho gostava de Política. Ajudava os cidadãos no dia-a-dia. Desfrutava de grande prestígio. Não podia concorrer ao cargo de Prefeito: a sua vida era centrada na Medicina... Com a Família radicada na Capital, sofria a dor da saudade e da solidão. Viagens cansativas e perigosas levaram o seu sorriso...

.........No relacionamento interpessoal, o Dr Milton era convicto, franco, objetivo, sabia o que queria... Em dezembro de 1971, após passar um ano na Escola Preparatória de Cadetes, nos reunimos. Ele contou que, na Família dele, havia um militar insatisfeito com o soldo baixo. Ele me alertou que outras profissões poderiam me dar uma renda maior... e que, mais tarde, o soldo poderia ser insuficiente. O Padrinho estava preocupado com o futuro. Foi sincero. A minha resposta demorou cinco segundos: “Eu sou feliz no Exército!”

.........Os quatro médicos daquela época e seus familiares eram muito queridos pelo Povo. Todos são merecedores de homenagens. Mesmo aqueles que apresentaram algumas limitações fizeram o que foi possível...

.........O Dr Milton Alves de Souza deixou saudade. Salvou vidas! Para que tão bondoso coração seja lembrado, o Sarandiense batizou, com o seu honrado nome, um Templo do Saber... Talvez não seja o maior. Nem o mais bonito... O importante é que ele paga... uma dívida de amor e gratidão...


(Dr Milton Alves de Souza, o quarto, da direita para a esquerda.
Foto: Professor Rogério Machado.)


(E.M.E.F. Milton Alves de Souza.)

sábado, 7 de setembro de 2019

Domingo no Parque


.........Ao chegar no Parque mais importante da Capital Gaúcha, parei para ver o trenzinho, cheio de crianças felizes. Embarcado no 2º vagão, havia um cachorro de raças misturadas. Estava adorando o passeio. Não precisaria dizer que a auto-estima dele estava lá nas nuvens... O empresário, um idealista, investiu R$ 300.000,00! Valeu a pena! Há, nesta vida, coisas que não sabemos medir em moedas. Aquele trenzinho musical tem a marca do Parque, que outrora era uma chácara do Dr Borges de Medeiros. Não se vê ninguém triste. Como não tenho tempo para ir à Nova York, aqui é o meu Parque Central...

.........Sob as primeiras árvores, uma Patrulha da Brigada Militar estava resolvendo um conflito, entre alcoolizados. Um homem magro queria agredir, com uma faca, uma morena. Um crime passional era iminente. O Cabo apontou uma arma de fogo para o homem furioso e, com energia, declarou: “LARGA A FACA!”. O bêbado largou a faca no chão. Os Soldados colocaram algemas nele. Levaram-no para a viatura e para o Palácio da Polícia. Os criminosos são sempre os mesmos. Alguns já tiveram várias passagens pela Polícia. A Brigada Militar perde muito tempo com o retrabalho. A impunidade vigora. O Tenente, para fazer uma operação, tem que ter autorização do Juiz. O bandido atua livremente, em duplas ou trios!

.........E as armas brancas? Por que, durante as revistas, não são apreendidas? Porque ficam escondidas pelo Parque! São perigosas? Sim! Nem sempre é possível salvar a pessoa ferida. Há situações dramáticas em que o Hospital fica longe...

.........Passada a tensão inicial, pois poderia ter havido balas perdidas, vivi momentos de emoção e esperança. Parei, sem querer, diante de um evento religioso. Três moças, de pé, na parte alta do gramado, tocavam violão e cantavam músicas sacras. Por volta de 50 moças estavam sentadas no gramado. Assistindo a apresentação e comendo bolo. Duas meninas afáveis percorriam o local com bandejas, servindo pedaços de bolo. Uma delas parou na minha frente: “O senhor quer um pedaço?” A tentação era grande. Respondi: “Não. Obrigado. Na verdade não posso. Bolo engorda. A sogra controla o meu peso...”.

.........Não basta ver os fatos. Temos que ler nas entrelinhas. Aquelas gurias meigas e disciplinadas provaram que é possível construir um mundo pacífico, alegre e agradável. Elas têm DEUS no coração. A falta de DEUS deixa um grande vazio na vida dos materialistas. Elas confirmam a leitura da Bíblia, feita pelo Sacerdote: “A árvore boa dá bons frutos!” O mundo das drogas produz crime, sangue, solidão, lágrimas, perda da Liberdade...

.........Surpreso com a descoberta, esqueci-me de perguntar o nome da religião. Mas eu não gosto de ficar parado. Continuei caminhando. Encontrei dois homens caídos. Um deles estava torto, debaixo de um banco. Apagou. Não deu tempo para escolher o local para deitar. Como caiu, ficou. Uma testemunha disse que ele está bebendo todos os dias! São vidas que se apagam ao entardecer...

.........O outro era o Sr Antônio. Estava com um ferimento no lado direito da testa. Deve ter havido um pouso forçado. Avisei aos amigos dele. Um vendedor de refrigerantes esclareceu: “Ele está abandonado pelos filhos. Não precisa avisar à Brigada. Daqui a pouco, a cachaça evapora e ele se levanta...!” Para vencer a bebida, o apoio da Família é fundamental. Mas o dependente químico tem que fazer a sua parte... O Sr Antônio não se ajuda!

.........Um vendedor de alguma coisa parou na minha frente: “Velho, quer comprar um baseado?” Respondi: “Não! Se eu fumar um baseado, o Exército desmorona!” Próximo ao gramado central, uma Voluntária de ONG estava oferecendo 4 filhotes de cães para adoção. Um mais bonito do que o outro! Engraçados, brincalhões... Até escurecer, com certeza, eles terão um novo lar... Tenho destacado-me pelo espírito crítico. Mas, reconheço, que o Gaúcho é um cidadão de boa vontade. É patriota, trata bem os animais, colabora, participa, ajuda, carrega no peito um coração verde e amarelo... O morador da capital, por sua vez, sempre apressado, ao empunhar volantes modernos, esquece a gentileza, em algum lugar do passado... Quem puder, salve-se!

.........Passei por uma senhora de 94 anos. Caminha todos os dias, sem bengala. Ela é um exemplo para todos nós. Principalmente para quem tem estilo de vida sedentário (fator de risco).

.........Um militar da Reserva me contou que a Brigada Militar enfrentou, na semana passada, dois bandidos, próximo ao lago maior. O que estava desarmado foi preso. Era perigoso. O que estava armado fugiu. Continua solto por aí... É violento! O perigo continua...

.........Saiu, do meio do bosque, uma jovem bem humorada. Estava estudando para o ENEM. Quer ser Veterinária. Estava sozinha. Não era a única! Ostentava o celular. Conversamos sobre os livros. Ela quer ler o “Coração de Soldado”. Valoriza os animais. Não conhecia algumas regras de segurança... Decidiu convidar alguém para caminhar com ela. Escolher os locais e horários. Esconder o aparelho. Não reagir, em caso de assalto. Os bandidos operam em duplas ou trios. São mais fortes do que os estudantes. Andam sempre armados. Não respeitam as câmeras de segurança... São violentos. Desprezam a vida... Vendem objetos para comprar drogas. Os traficantes dirigem carros importados...

.........Havia mais de duas mil pessoas no Parque! No meio daquele povo todo, alguém me chamou: “Coronel!”... Era o Cigano. Disse, entristecido: “A Alemoa vai voltar para Santa Catarina: levaram o cachorro dela!” Respondi: “O Thor era como um filho... Ela está sozinha no mundo!”.

.........Eu parei, pensativo... Por quê? Um Parque de contrastes, num Brasil de contrastes... Havia, perto de mim, duas motos ROCAN, da Brigada Militar. Escutei mensagem pelo sistema de rádio: “Sargento, temos um problema na Avenida João Pessoa!” Com presteza, um grande aparato policial se deslocou para lá... Algumas áreas do Parque já estavam escuras. Envolto pelos colegas, um jovem universitário estava caído, pálido, ferido por arma branca, segurando a mão da Namorada. Um colega de aula disse que o amigo, apenas, segurou a mochila... O drogado entendeu que houve uma reação... Oriundos de uma Cidade da Região Metropolitana, conheceram, numa mesma jornada, o “Inferno” e o “Paraíso”... Sirenes, luzes, perícias, repórteres, motos, ambulâncias, viaturas, Força Nacional... até os sinos bateram... Os Soldados da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros são merecedores do nosso aplauso. Herois, 24 horas por dia! Mas, a Guerra estará perdida, se não educarmos a criança... se não mudarmos o coração do homem.