quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Está Faltando Alguém na Avenida


.........Numa tarde de sábado, fomos visitar o Cantor JOÃOSITO, líder do Conjunto JOÃOSITO E SEUS COMETAS, Tio do ADEMAR, o Gauchinho. Estavam ensaiando. Cantavam com prazer. O JOÃOSITO era compenetrado. Não falava com a piazada. O HUGO ROSSI, que tocava pandeiro, era comunicativo e leal ao irmão. Antes de seguirmos para a Curva do Rio Bonito, escutamos uma canção genial: CHALANA (... “nas tuas águas tão serenas / vai levando o meu amor”). 
.........Depois, encontrei o HUGO colocando os números nas casas da Cidade. Curioso, como de costume, perguntei qual seria o número da Loja do meu Pai (FRIDOLINO), a Casa Santo Antônio. Ele respondeu: “999!” Logo em seguida, afixou o número. Está lá até hoje!
.........Era comum encontrar os ROSSI, o Paraguaio e o VERCI comprando tinta na Loja do Pai, pintando as casas da “Alta Sociedade”...
.........Num dia de preguiça, quando eu voltava da aula no Colégio Santa Gema, encontrei o HUGO e seus amigos pintando a Igreja N S de Lourdes... O que mais me impressionou foi que um deles subiu na abóboda da igreja. Não tinham medo! Estavam acostumados... Mas foi uma operação de alto risco!
.........Ao analisar a trajetória dos herois do passado, temos que conhecer o mundo deles... Tudo que acontecia lá fora refletia nos nossos lares. Alguns gestores gastavam mais do que arrecadavam. Provocavam inflação, fome e desemprego. Ficávamos dependendo da Colônia... O Pai dizia, na Loja: “Quando a Colônia vai mal, tudo vai mal!” Eu não entendia de Economia, mas as prateleiras vazias não sabiam mentir... Os políticos estavam bem. O Povo passava fome! Esse era o Mundo de HUGO! Os pintores não tinham trabalho. Reuniam-se, na Barbearia do RIQUETO e do TELMO, esperando, com ansiedade, que uma boa alma resolvesse pintar a casa. Hoje, o passado parece pequeno, mas, à noite, faltava luz! Preocupados com obras de grande popularidade, os governantes não investiam no futuro do BRASIL. Quando a FGF mandava uma bola nova, era motivo de festa. O meu Pai foi um dos Sarandienses que teve que pagar a conta da irresponsabilidade dos outros.. Quando a Loja fechou, 150 famílias deixaram de pagar as dívidas. Ele era compreensivo, mas sofreu muito com isso...
.........O HUGO era assíduo: comparecia aos eventos. Era versátil: foi jogador do Torino, do Ipiranga e do Harmonia. Trabalhou como Pintor, Músico e Treinador. No outono da vida, passou a produzir a coluna Túnel do Tempo, a mais lida do Jornal. Com boa memória, colaborou para que outras gerações conhecessem as lições do passado... Resgatou nossa bonita História. Mostrou aos jovens que é possível vencer na vida...
.........O HUGO poderia ter produzido bem mais. Ele trabalhou em condições desfavoráveis. Apesar dos laçassos da pobreza, conquistou resultados magníficos, no campo dos valores imateriais. O entusiasmo dele era contagiante. Entendia de gente. Sabia se posicionar diante das autoridades e dos pobres. Ele acompanhava com interesse o destino de cada sobrinho e de cada jogador. Sentimental demais, começou a morrer quando o destino desmontou o mundo que havia lhe dado a felicidade... Viu, com tristeza, uma geração inteira se espalhar pelo mundo...
.........Ele amava o Futebol. Quando não havia dinheiro para mandar fazer camisetas, fazia com sacos de farinha... da marca Harmonia... Foi ao Estádio dos Eucaliptos ver o Pelé jogar. Antes de um treino, comentou: “Ninguém tira a bola do Pelé!” Batizou o filho primogênito com o nome de um craque do Inter da década de 50: LARRY... (Larry Pinto de Faria).
.........A obra-prima do HUGO foi montar o melhor time de futebol da História do Grande Sarandi. Nos jogos decisivos, o Estádio Pedro Demarco ficava lotado... Não cabia mais ninguém! Todos queriam ver as tabelinhas do VITOR HUGO, ITACIR, GETÚLIO e DALAVECHIA... Eles entravam com bola e tudo! O HARMONIA treinava todos os dias, ao cair da tarde. Seus jogadores eram exemplares: não cometiam faltas! Faziam sacrifícios: quando não havia ônibus, viajavam na carroceria dos caminhões, correndo uma série de riscos... Nada se conquista sem trabalho e sacrifício!
.........O Técnico era agregador hábil. Reuniu todos os jogadores, titulares e reservas, na casa dele, para uma confraternização, num sábado à noite, na véspera de uma final de campeonato com o temido IPIRANGA, do Willy Schaeffer. Estávamos tentando aliviar a tensão... Lá pelas tantas, o HUGO declarou: “Olha, gurizada, amanhã à noite, neste mesmo horário, estaremos todos felizes, comemorando... ou arrasados! O meu primeiro time e o dele era o HARMONIA... o segundo era o INTER...
.........Eu não consigo imaginar os treinos do HARMONIA sem ele... Sua voz paternal ainda ecoa na lembrança: “Não tem ninguém no rebote!” / “Cruza para trás, SABINO!” / “O VÍTOR IVO vai bater a falta!” / “Solta a bola, FLÁVIO!” / “Chuta de fora da área, ROGÉRIO!” / “QUICO, levanta a cabeça!”...
.........Ainda ontem me emocionei, ao me lembrar que o HUGO recebeu, de braços abertos, os negros e os pobres... Dono de um coração grandioso, contou que o Pelé, quando foi fazer teste no Corinthians, foi mandado embora... era um negro magricela! Todos ganharam uma oportunidade, inclusive eu, um branco magricela...
.........O tempo provou que ele estava certo: (os negros) SABINO, VALTER e CATARINO deram grandes emoções ao Povo Sarandiense... Tornaram-se queridos craques. Na época, pensei que o SABINO não suportaria a pressão de barulhentas torcidas... Mas eu me enganei. Ele ia para cima do lateral direito... "Passava de passagem"! Que saudade! Encontrei-o num supermercado. Ficamos um tempão recordando os  momentos felizes que o HARMONIA nos deu...
.........Um dos fatores das campanhas vitoriosas do ALVI-AZUL foi a sociabilidade do HUGO... Conversava com todos! Ele não deixava o time parado: marcava jogos e ajudava divulgá-los... Parece fácil? Mas não havia jornal na Cidade! Ele sabia a situação de cada jogador. No fundo, era sensível, tinha tato... Quando a doença levou o capitão OSVALDO (TITUM), ficou inconsolável. Nem subiu para o treino...
.........Ao visitarmos o campo do HARMONIA, para recordar, ele me disse com tristeza: “VENDERAM TUDO!”. Uma legião de Sarandienses passou a infância naquele gramado! Com arquibancadas confortáveis, ali seria o nosso Maracanã! É difícil construir, sem destruir o que os outros construíram... Foi o fim de um grande sonho!  O jogo acabou!
.........Não deixou de ser humilde, nem nas grandes vitórias... Apesar dos ventos da adversidade, foi um homem feliz... DEUS permitiu que ele vivesse momentos maravilhosos da vida nacional... Era saudosista. Guardava, de lembrança, cada carta, livro, fotografia, revista, notícia dos jogadores que treinou... Na parede da sala, mostrava com orgulho um retrato grande do Conjunto JOÃOSITO E SEUS COMETAS... que o tempo levou.
.........Trabalhou cercado por amigos leais, como o NILO BAUDIM, que trabalhava várias horas seguidas na copa, vendendo gasosa e defendia os jogadores do HARMONIA como se fossem seus filhos. Cercado por amigos leais, como o ADEMAR FERRONATO... que o ajudou até os 45 minutos do segundo tempo...
.........Não consigo imaginar os treinos do HARMONIA sem ele... Tudo bem: o Pai me ensinou que a alma não morre. Mas, para quem teve o privilégio de trabalhar com o HUGO, a Avenida nunca mais será a mesma!
.........Aprisionado pela doença em sua própria casa, viu os Anjos chegarem no SARANDI... Vestia uma camiseta do Internacional de Porto Alegre. Levava um crucifixo grande no peito e um pandeiro velho na mão...
.
..............."E assim ele se foi,
...............nem sequer se despediu(1)
...............Deixou indômita saudade,
...............no coração da Cidade
...............e na curva do rio.




(1) Canção “CHALANA”, do Mário Zan.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

O Mundo dos Teus Olhos

.........Viver bem em PORTO ALEGRE exige planejar a solução de problemas. Por exemplo: resolver apenas um por dia. Ou dois: um de manhã e um de tarde. Se o cidadão tentar resolver três problemas ou mais, irá sofrer muito. Ontem, eu estava entusiasmado. Decidi acelerar e colocar a agenda em dia. No meio da tarde, antes do lanche, fui a uma empresa que expede livros, revistas, cartas... Eu estava com muita pressa. Queria, ainda, ir a vários lugares. Logo que saí da garagem, minha agenda começou a fracassar. Moradores de uma Vila trancaram a Avenida. Parece que queriam uma lata de tinta... Alguns enxergam uma Cidade democrática. Qualquer um pode trancar qualquer rua! Parece que a Constituição Federal não é ensinada nas Escolas. Milhares de pessoas presas no trânsito, sem poder voltar para casa... com o direito de ir e vir desrespeitado... Sinceramente, eu não consigo ver democracia nisso. Nem educação. Nem cidadania.

.........Deixei o auto em um posto de gasolina. Fui correndo pelas ruas, com o envelope do dia. Era ainda cedo para desistir. No caminho, há uma sinaleira. Fica muito tempo verde para as máquinas. E alguns segundos para os humanos. Quando ela abre para estes, “salve-se quem puder!” Cai pacote, sacola, pipoca... Algumas mães quase arrancam os braços dos filhos! Eu deixei o boné cair, no meio da Avenida. Voltei para pegar. Foi um erro! Por pouco não amassei a lataria de uma viatura. Vários motoristas citaram a senhora minha genitora... Se eu fosse o Xerife, planejaria uma Capital... para os humanos.

.........Ao chegar na agência, fiquei alegre ao perceber que não havia fila. Isso acontece uma vez por ano! Minha alegria durou pouco. Nenhum Colaborador me chamava.

.........Devia haver um motivo muito forte. E havia! Uma caixa misteriosa, quadrada, de 50 cm de lado, estava sobre o balcão. Todos estavam trabalhando para expedir a caixa. Faz parte da profissão. Conversavam sem parar sobre a Comadre. A gerente indagou ao Cliente: “Como vai a Comadre? Ela melhorou?” Recebeu como resposta: “Ela piorou. Está no Hospital.” “E as filhas dela, onde estão?” O rapaz respondeu: “Longe, viajando.” Um colaborador quis saber se a obra já estava pronta. O Cliente opinou: “Não vai dar tempo para terminar o livro...“ 

.........Eu, meio curioso, já não via mais o tempo passar. Formou-se longa fila. Uma idosa, que estava atrás de mim, com jeito de italiana, tipo braba, indagou: “Por que eles não mandam a caixa?” Eu respondi: “Desde que cheguei, eles viram a caixa, carimbam, desviram, colocam fita, viram, escrevem, colocam mais fita, perguntam sobre a Comadre... Ela continuou: “Mas o que será que tem dentro?” Eu respondi: “Mandaram chamar um Padre para benzer a caixa.” A idosa não se conteve: “PORCA PIPA!” É incrível: conseguiram quebrar o carimbo! A Gerente mandou buscar outro. Por um lado é engraçado. Por outro lado é triste. Decidi desabafar com a amiga da fila: “No Quartel, os militares, quando trabalham, conversam, apenas, assuntos de serviço. Evita acidentes. Aumenta a produtividade. Não existe carreira militar sem disciplina... e método de trabalho.” Ela acrescentou: “Olha só quanta gente na fila! Poderiam estar fazendo tanta coisa!” Os Colaboradores nos ouviram. Não gostaram.


.........Uma Colaboradora de olhos azuis me chamou. Fez-me algumas perguntas. “Por que o senhor está nesta fila dos Clientes Especiais?” Respondi: “Eu sou SÊNIOR!” Ela comentou: “A nossa Agência não trabalha com a categoria SÊNIOR!... O senhor se autodeclara idoso?” Fiz a minha defesa: “DEUS me livre! Sou um jovem de espírito!” A moça continuou: “O senhor tem alguma patologia?” Respondi: “Tenho. Artrose no joelho. Necessito de bengala para andar.” A moça indagou: “Mas eu não vi a bengala. Onde ela está?” Esclareci: “Minha sogra colocou a bengala na mala, por engano. Voltará só no Natal!” A Colaboradora era muito interessada: “Por que não foi na UPA?” Respondi: “Eu fui. Mas não havia médico dentro. Não era época de eleições!” Continuou a fazer o meu prontuário: “O senhor fez prótese?” Respondi: “Sim. Piorei. A prótese estava vencida!” Continuou: “Falou com o Ouvidor?” Eu respondi: “Sim! Ele estava com cera no ouvido!”

.........A moça dos olhos azuis prosseguiu: “O senhor tem algum amigo no núcleo duro do Governo?” Respondi: “Mas nem quero! Se o general descobre algum Militar envolvido com política... manda jogar no mar!” Continuou: “O senhor faz Caridade?” Respondi: “Quando a sogra autoriza!”  Naquela altura, eu tinha certeza de que seria preso... Não é pessimismo. É intuição. Sendo filmado por oito câmeras... E olha que, em princípio, eu me auto declaro do bem. Eu só quero mandar uma revista! E estou louco de pressa! Parece que a Colaboradora Misteriosa leu o meu pensamento: “O que o senhor está remetendo neste envelope?” Procurei esclarecer logo: “Uma Revista Verde Oliva, editada pelo EXÉRCITO de Brasília!” Ela continuou: “Quem é o destinatário?” Respondi: “É um Veterano de Guerra!”

.........Eu já estava começando a entender aquele episódio... de inteligência emocional. Mas eu queria uma prova! Disse para a jovem, de singular beleza: “Nós estamos falando, há meia hora, sobre a Comadre. Eu trabalho como Escritor. Preciso muito saber... quem é ela!” Foi com lágrimas nos olhos, que a jovem me contou um segredo: “A Comadre é uma brilhante Professora. Ensinou-me a escrever. Está doente. Houve metástase. O mal se espalhou. Fez um pedido: quer ver, nos últimos dias, as fotografias dos filhos... e dos Alunos que educou. Talvez ainda dê tempo! Os álbuns estão naquela caixa... que o Padre benzeu. O filho dela quer mandar razões para viver. Os ex-alunos querem mandar um milagre!

.........Hoje de manhã, chegou uma carta da Professora. Preste atenção! Ela quer ensinar a viver, até o fim:

Procure alguém que coloque DEUS na sua vida.
Você pode até viver sem Ele,
mas andará de mãos dadas com um grande vazio.
Procure alguém que coloque a Música no seu caminho.
Você pode até viver sem ela,
Mas vai se arrepender depois...’ 

.........A Colaboradora da Agência continuou: “O senhor está sempre com pressa. Não percebe que a pressa tem limite. Quando o homem perde a batalha da vida, a pressa perde o sentido. Quando a Professora veio aqui, o senhor não falou com ela. Quem sabe se colocar no lugar do outro encontra motivos para perdoar. O senhor vê uma caixa sobre o balcão. Eu vejo razões para viver. O senhor vê um livro. Eu vejo um novo amanhã. O senhor vê uma revista. Eu vejo a esperança. O senhor vê uma carta. Eu vejo uma história de amor. O senhor vê uma Comadre. Eu vejo a melhor Professora da minha vida. O senhor espera ser atendido logo. Os alunos da Professora  esperam por um milagre!

.........Os nomes e agradecimentos são importantes. Quem foi que disse que o ingrato não receberá ingratidão? Se precisar chorar, chore de emoção, como eu chorei nesta tarde... Mas nunca mais chore as dores da ingratidão. Ela é uma arma. Usada por infelizes. A Madre Tereza de Calcutá ensinou: ‘No fundo, é tudo entre eu e Deus!’ ”

.........Alegre por ouvir palavras tão belas, exclamei, já no caminho da porta de vidro: “Você tem razão! Nunca vi tanta nobreza! Amanhã, voltarei!”
.........– “Para mandar um livro?”
.........– “Não! Para ver o mundo com os teus olhos!”