quarta-feira, 26 de junho de 2019

Assim Caminha o Sarandi


.........A charrete do senhor TABORDA vai saindo lentamente... da Rua TIRADENTES. Leva compras dos fregueses da Casa Santo Antônio. Na Estação, um ônibus da ÁGUIA BRANCA leva os rolos de fitas dos últimos filmes do Cine Guarany. O senhor DÂNDALO havia passado um programa duplo sobre a conquista do Oeste dos ESTADOS UNIDOS. As calçadas da Avenida 7 de Setembro são cheias de vida. Crianças fazem bolhas de sabão. Jogadores sobem, com velhas chuteiras, para o treino do Harmonia. No terreno de cima, os vizinhos esperam um galo de rinha da PALMEIRA. Exibem um Jacu caçado no potreiro do OLTRAMARI. No Armazém da Loja, os gatinhos mamam. Todos, ainda, de olhos fechados. No tanque, a Mãe (JOVILDE) lava roupa, quase sempre na água fria.

.........Ouvindo as Homenagens Sonoras da então Emissora Sarandiense ou comendo abacate, eu refletia sobre o que acontecia, o que contavam... Num passado, que hoje me mata de saudade, fiz uma descoberta que me assustou: a fragilidade da vida! A morte, às vezes, está por perto e nem notamos!

.........Na calçada da Rua TIRADENTES, dois estudantes com suas malas, vindos da Capital, me reconheceram. Vieram visitar os Pais. Perguntei o que existe em PORTO ALEGRE? Um deles me respondeu: “Progresso.” E indagou: “O que existe no SARANDI?” Respondi: “A felicidade!”.

.........Na Loja, a Dona IRMA media tecidos. A “DUDA” e a IVANICE pesavam gêneros. A MARLENE refletia sobre a situação de dois noivos... que jogaram as alianças na chuva. Tudo terminou por uma mentira. Ou meia verdade. A mentira é uma arma. Mas é pecado.

.........O Pai (FRIDOLINO), no balcão central, atendia, atenciosamente e com entusiasmo, um freguês fascinado por armas. Estas faziam parte da cultura. A Cidade sofria influência do cinema. Alguns guris brincavam com revólveres de espoleta. Outros com espingarda de rolha.

.........A honestidade tornou o meu Pai um homem popular. Ele ensinava e permitia que alguns fregueses dessem tiros nas paredes do Armazém. Quando o senhor ALBINO fazia compras, a gurizada já sabia que tinha que sair.

.........Mas o freguês dessa tarde estava indeciso. Havia armas de vários calibres e marcas. O Pai se distraiu. Foi chamado várias vezes. O cidadão não quis pagar o preço da mercadoria. Aproveitou a distração de todos. Pegou um revólver 38 e saiu. A partir da porta da Avenida, começou a correr, para cima.

.........O Pai notou a falta da mercadoria. Ficou triste. Por educação, jamais faria uma coisa dessas para alguém! Muito magoado, saiu da Loja, como estava, sem levar nada. Orgulhoso, faria de tudo para não receber uma reprimenda do Tenente do EXÉRCITO. Este conferia o mapa, na íntegra! Começou a correr, de sapato, sobre as pedras duras. Levava, com ele, apenas, duas cartas estratégicas: um canivete velho e um santinho do Santo Antônio. A Loja não contava com Sistema de Segurança. Na distribuição de Soldados, SARANDI não estava nas prioridades da Brigada. Como dizia o DINO, meia cancha do HARMONIA: “O Sarandiense tem que bater o escanteio e correr para a área ... para cabecear!” Em síntese: o Empresário tem que fazer tudo!

.........Mas será que vale a pena arriscar a vida? Por dois mil cruzeiros? Correr sem saber para onde? Deixar, talvez, uma família sem rumo? Correr com lobos? O bandido pode ter munição, arma branca, amigos esperando... VOLTA, PAI, VOLTA!

.........O fugitivo, na Rua ÂNGELO RECH, olhou para baixo. Queria saber se estava sendo perseguido. Estava. Dobrou. Continuou correndo. Estava preocupado. Arrependido. Ele foi surpreendido pela reação do Comerciante.

.........Olhando de outro ponto de vista: não são os dois mil cruzeiros que estão em jogo. É o caráter de um cidadão responsável. A arma, em mãos desonestas, poderá tirar a vida de inocentes... CORRE, PAI, CORRE!

.........O Pai, quando chegou na Rua ÂNGELO RECH, olhou para trás. Queria saber com quem poderia contar. Ninguém! Mas, na verdade, ele nunca esteve sozinho... O Pai sabe que está correndo risco de perder a vida. Foi ele que ensinou que é perigoso viver. Já correu 300 metros. E não parou. Afinal, o que está em jogo? Tudo!

.........O ladrão se aproxima da cerca do potreiro. Ele tem pouco tempo para pensar. Tem que decidir: lutar ou fugir? Mas como tirar a vida de um homem honesto? De um Comerciante que ajudou tanta gente? Olhou para o meu Pai, que continuava correndo. Alguém gritou: “Não atirem no FRIDOLINO!” Largou a arma na grama. Pulou a cerca, colocando as mãos num moirão. Correu pelo potreiro, na direção do Rio BONITO.

.........O Pai, ofegante, após correr 400 metros, juntou a arma, agradeceu ao poderoso Santo Antônio e voltou para casa. Fomos ver os gatinhos. Já abriram os olhos. Ele saboreia o chimarrão que a Mãe fez. O cinema mostra o cartaz de um novo filme: “ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE”. O HUGO ROSSI escreve, no cartaz, o jogo de domingo, no Estádio PEDRO DE MARCO: HARMONIA X UNIÃO DE RONDINHA. O MECO vai jogar! Um grande amigo do Pai, o ALBINO PIZATTO, veio comprar uma espingarda... É melhor tirar os gatos do Armazém! O Repórter ESSO da Rádio FARROUPILHA disse que o PAPA está doente... Apesar da fragilidade da vida, o meu pequeno SARANDI vai dar mais um passo. A vida continua. Obrigado, SANTO ANTÔNIO!





(A charrete do senhor TABORDA, pai dos jogadores XIBA e JOÃOZINHO, vai saindo lentamente...)

sexta-feira, 14 de junho de 2019

FUGA DE MARTELO

........Em Brasília, lutei com persistência contra a corrupção nos combustíveis. Diante de inimigos ocultos e interesses conflitantes, obtive poucos resultados. Eu não sabia que o Brasil era assim! Triste, voltei ao Rio Grande altivo, rico de valores e tradições.

.........Em Porto Alegre, fui residir na Rua São Manoel, em lar com pouca estrutura. Não havia silêncio, nem luz, nem chaves... Por isso que Militar ganha bem... Num inverno rigoroso, a luz veio no quinto dia. A imobiliária cobra como se fosse Avenida Paulista! Tive uma surpresa com as chaves.

.........Fui fazer cópias das chaves  no Bairro Santana. Enquanto o profissional fazia o trabalho, chegou um cliente vindo, talvez, de uma galáxia vizinha. Com a cabeça cheia de graxa e teia de aranha. Um mistério bem misterioso. Fiquei em dúvida: perguntar ou não... Os nativos não gostam de perguntas. Quando perguntei a um jovem “di Porto Alegre” se poderia baixar o som, por pouco não houve uma grande pancadaria... O rádio dele tocava só propaganda! Tive que ler um livro de crônicas no bairro dos bacanas. O silêncio e os pássaros são amigos do Pensador.

.........Mas, considerei que deveria fazer de tudo para não ser acometido por moléstia similar. Sem prata na guaiaca, sem sorte no amor e com graxa no cabelo, seria bem mais difícil pegar guria. Não custa perguntar. Para evitar uma tragédia, indaguei com a polidez que me é peculiar. Afinal, o Escritor tem que conhecer os problemas do Povo. Perguntei em tom amigável: O QUE HOUVE COM O TEU CABELO?

.........Bah! Me arrependi na hora. O Cidadão não gostou. Ficou vermelho. Disse que pisei nele. Que era coisa da minha cabeça. Foi ficando furioso. Começou sair fumaça pelas orelhas. O Chaveiro tentou amenizar: “Está na moda colocar óleo Palmolive no cabelo!” Sobre o balcão, havia um martelo. O Cliente olhou para a ferramenta. Pensei: será que vai pegar o martelo? Eu estava confiando no seu espírito democrático... O furioso cidadão pegou o martelo com energia. Medo eu não tinha. Nem coragem. Eu só não gostava de tomar martelada.

.........Meu espírito militar falou mais alto: decidi atacar para a retaguarda. Subi a Vicente Da Fontoura correndo a 90 Km por hora. O homem do martelo gritou: “TRAIDOR!” Veio atrás de mim a 90 Km por hora. Fiquei com a impressão de que ele queria acabar comigo. No bom sentido. O Teixeirinha conhecia bem a gauchada: "...mas se alguém me pisar no pala... meu revólver fala..."

.........Numa esquina, passei por duas Soldadas da Brigada Militar. Eram belas, elegantes e educadas.  Uma Nação se constroi, também, com bons exemplos! Elogiaram o meu preparo. Não perceberam o pânico.


Corri na direção do Arroio Dilúvio. Aquele que já era para ser um ponto turístico piscoso. Não havia ponte. Fiquei com uma dúvida gaudéria: se atravessar, livro-me do perseguidor, mas poderei chegar do outro lado com doença de rato, tétano, hepatite e chikungunya. Com um pouco de azar, poderei, ainda, ser multado por crime ambiental.

.........Dobrei para a esquerda. Corri para a próxima ponte. Passei por um vendedor de gatos. O homem do cabelo estranho parou na beira do Arroio. Não gostou do que viu.  Com muita raiva, jogou o martelo na água “mineral”. O “carpinteiro” ouvia vozes, via personagens... Parou para ver a gataiada. Na Avenida Ipiranga, tive que diminuir o ritmo. Mendigos dormiam na calçada. Parece que o pessoal da Assistência Social não se lembra deles... Todos têm cães. Para acabar com a pobreza, nenhum patriota deve dormir de dia. "À Pátria tudo se dá, nada se pede!" Que saudade do governo forte! O Brasil é mais feliz sob pulso firme!

.........Meu perseguidor implacável foi atacado pela cachorrada. Não desistiu. Entrou numa ferragem. Mistério. Com o “melãozinho” funcionando em baixa voltagem, eu não conseguia pensar direito. Entrei na Rua da Igreja, atual Duque de Caxias. Entramos! O cheiroso era um baita atleta! Lembrei-me do poderoso Santo Antônio. Ele atendia à minha Família na hora. Eu precisava que me ajudasse de novo.

.........Cruzei por algumas senhoras. Estavam maravilhadas com a roupa de um jovem. Mostrava, parcialmente, uma peça íntima colorida. Aparecia um pedaço do cofrinho. Que bonito! O homem do cabelo com graxa parou. Interessou-se. Distraiu-se. Gostou de alguma coisa. O trânsito estava parado. Aproveitei a confusão. Entrei na Catedral. Que alívio!


Tratei de sumir. Passei por uma porta na parede do lado direito. O senhor Bispo fazia uma palestra. Ele me reconheceu: “Olá, Claudio! Tu também vais fazer o Curso?” Respondi: com certeza! Ele continuou: “O Henry ainda está no Seminário?” Respondi: de que Henry o senhor está falando? Enquanto o Bispo pensava, tocou o sino. Acabou a Palestra... A Freira aproveitou para fazer uma pergunta: “mais alguém vai fazer o Curso de Marcenaria?”

.........Saí da Catedral no meio da multidão, para não ser reconhecido. Fiquei mais calmo ao ver que a segurança era de peso: uma dupla de Soldados (tradicional Pedro e Paulo). Fortes e bem equipados. Avistei, do outro lado da Rua, o meu furioso perseguidor, entrando na Assembleia Legislativa. Levava na mão direita um martelo novo... Que perigo! Espero que os Deputados não perguntem nada.